Relato Íntimo


Olhei pra o tempo. Pensei em tudo que é possível viver, dei-me conta que estava destinada à desgraça de viver com a presença da morte constante,a morte dos momentos bons, a morte da minha voz, a morte de quem eu amo, o falecimento progressivo. Estava fadada à nostalgia. Lembrei-me de quando eu andava por uma estradinha perdida que ligava duas cidades serranas. Havia chovido e tudo estava tomado por um ar inebriante, um odor de pés de bananeira e marmeleiro chegava às narinas, plantas verdíssimas orvalhadas compunham a paisagem, era gostoso de ver. Na minha caminhada avistei uma espécie de pequeno castelo branco, aquilo me despertou curiosidade tremenda. Subi as escadas deterioradas, cheias de galhos e flores molhadas. Os portões estavam quebrados, lá dentro, tudo abandonado. Senti aquela coisa estranha, coisa que se sente quando acha-se algo antigo, perdido, fiquei imaginando o aconteceu naquele local há anos atrás, as pessoas que por lá passaram, agora palmos abaixo do chão.Da sacada observei uma construção antiga, Jesus  crucificado , com o rosto tomado de lodo esverdeado e a expressão melancólica, colunas no estilo romano , em uma placa três retratos antiguíssimo , sob moldura clássica e bronzeada.Atravessei a rua e quando avistei de perto vi que tratava-se de um mausoléu construído em 1941. Lá estava o casal Arruda , primeiro morrera a mulher , dias depois , sem motivo aparente , o marido, e lá foram os dois enterrados.
Acontece que hoje, me veio à mente tanta coisa. Na verdade, pensei nos meus romances que nunca acabavam, na prisão que vivemos, em como o mundo castiga a gente. Precisei deitar a cabeça no travesseiro e chorar feito criança, não aconteceu nem um evento que me abalasse especificadamente, mas algo me dói fundo. Por impulso, senti necessidade de uma dor física, e comecei a morder o lábio superior e a arranhar as cochas. Foi dor, prazer, tristeza. Eu ouvia uma música que falava de desespero,  a voz doce de Morrissey cantava:

And I know it's over - still I cling
I don't know where else I can go
Over and over and over and over
Over and over…
I know it's over
And it never really began
But in my heart it was so real

Senti-me exatamente assim,
sabendo que acabava, acabava, acabava… Cacos que refletiam um ser que carregava todas as mazelas em si. Tomei toda a cama para mim e joguei os cigarros ao chão.

It's so easy to laugh
It's so easy to hate
It takes strength to be gentle and kind
Over, over, over, over

Começou a tocar alto. Eu já havia ouvido aquela canção. De repente senti-me flutuar em um lago, um lago no meio de um jardim de Monet. Senti-me moçoila nos anos 30, com toda a pureza e inocência que uma moçoila de 30 carrega no coração. E flutuei por tempos, até que resolvi sair e à beira do lago estavam àqueles sapatinhos de que eu tanto gostava. Bebi uma água límpida em um chafariz disposto em frente a uma casa de portão alto. Tudo como se fosse uma tela de Monet. E senti-me tão bem. E senti a recompensa do sofrimento.
Mas sai do quadro, levantei, olhei no espelho e ao me ver, comecei a chorar novamente. Passou por meu pensamento a imagem do que eu seria daqui a alguns anos, provavelmente o mesmo do que eu sou agora, mas já cansada, acabada, falida. Não deixei o pensamento me assombrar. Entrei pra debaixo do chuveiro, agora sob a melodia de
Morrissey, senti a água escorrendo pela minha face. Morrissey... está entranhado em mim, como o fedor humano.  Não, não posso compará-lo a isto. Como o frescor feminino, sim.

Love is Natural and Real
But not for you, my love
Not tonight, my love
Love is Natural and Real
But not for such as you and I, my love
Oh Mother, I can feel the soil falling over my head

Lá fora, chamavam-me, ignorei. Deixei o chuveiro gotejar e acompanhei o caminho da gota até chegar a minha pele e
tocá-la em arrepio. Dançava a melodia suave e puramente britânica. De uma hora pra outra o pingo engrossou e agrediu-me. Vi que era hora de parar. Nunca acontecera aquilo comigo. Momentos de “crise” costumam perdurar-se, transformar-se em ciclos que não consigo sair. Mas um momento de tranquilidade e êxtase como esse era raro. Senti cada parte do meu corpo. Senti minha mente livre.
Desejei viver em um tempo diferente, cercada por coisas simples, e amar alguém [e principalmente permitir-me]. Havia vivido uma loucura, ou um nirvana, algo que não sei explicar, apenas descrever.
Sinto estar tomando um veneno lento. Ou um remédio de efeito passageiro.

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