Ponto morto



E então você desengata as marchas, já não pode dar ré, só resta andar em ponto morto, até saber onde tudo isso vai parar. Não é que esteja entregando os pontos, mas deixando de querer ter o controle de tudo. Você se arrisca, claro, mas não peca por medo da entrega.
Nessa levada observa os vidros da vida e vê quem passou por ela, quem você tirou da sua vida e nem sequer deu uma segunda chance, quem você insiste em afastar, no banco do  carona , não há ninguém sentado. Mais uma vez você encontra-se só! Não, não é triste, a escolha foi sua lembra? No porta-malas há apenas uma mala, com poucas coisas, afinal você viveu se desfazendo de tudo, só ficaram lembranças e estas, nem sempre são boas!
No rádio nada sintoniza. Talvez você esteja fora de sintonia, sem transmissão alguma. Um nada!
Quando aprendemos a dirigir passamos por inúmeros testes, desde teóricos até práticos, e finalmente tiramos nossa habilitação como condutores. Nunca falam em ponto morto, pelo contrário, dizem que não é bom deixar o carro assim em descidas, pode até ser perigoso. Não nos explicam muitas coisas e a gente vai "guiando" pela cidade com medo. Medo de estacionar, de bater, de dar ré, medo de dirigir por si! Quando estamos em "ponto morto" só precisamos manejar a direção, não é preciso trocar marchas, basta "seguir o embalo”… mas uma hora ele para! Sempre para!
Na rota da vida, ninguém nos ensinou a lidar com a gente, com os sentimentos frustrados, com a sensação de medo, solidão, perdas, danos, amores… não nos passaram esta lição. Deram-nos a chave do carro e disseram: “Dirija! Siga! Ande! Cuidado com as imprudências!”
E como é difícil dirigir sozinho, ou ter deixado os companheiros de viagem na parada anterior. Algumas viagens são só suas de mais ninguém, afinal você não pode colocar outras vidas em risco quando se está em "ponto morto".
Você tem várias possibilidades, afinal a chave ainda está com você, mas você também pode sair deste ponto, abandonar tudo e seguir a pé, de um novo ponto. Você pediu amor, recebeu! Pediu trabalho, recebeu! Recebeu coisas que não pediu, talvez não aqui, mas teve de aceitar. Ouvi que a "felicidade não é deste mundo". Sim, estamos de passagem na rodovia na vida, mas será mesmo que nos colocariam com a chave nas mãos se não fosse para ser feliz? Talvez não exista felicidade plena, completa, mas poxa vida, eu já fui feliz várias vezes e tanto. Só me perdi no caminho agora, peguei atalhos, dirigi em alta velocidade onde não precisava estacionei em lugares errados e permaneci errando por tanto tempo. Atropelei pessoas que não cumpriram minhas exigências (e quem penso que sou para exigir algo). Fui atropelada, arranhada, batida, riscada diversas vezes por pessoas que achei, eram perfeitas! A minha estrada está um pouco deserta, cheia de solidão e pó, mas ainda não parei de dirigir. Se peguei a estrada errada, posso tentar mudar de direção, ainda dá tempo, afinal o ponto morto tem movimento. 

E as marchas, bem elas esperam insistentes para serem trocadas. 

Horríssono



O chá acabou cedo. Nem são cinco.
Deveras foste audacioso em colocar o sangue das cobras nele. Nem repulsa senti e creio que logo estarei em paz. Ignore meus hábitos, também meus hálitos. Falo demais, sei bem.
Não se enfureça com minha frieza, também não se intimide com meu deboche. Eu sou só um habitante do mundo real citando frases de Sherlock Holmes a cada dois minutos. Ignore meus cachimbos baratos, mas guarde os caros. Ou doe-os!
Meus sapatos, quero-os na vitrine de alguma loja, mas que seja proibido comprá-los. Ao contrário de minhas gravatas, por elas tenho apreço imenso e ficariam lindas no pescoço de alguém. O carro? Não sei o que fazer do carro...
Sobre as flores que deixei morrer? Poderia enterrá-las comigo. Nada como a flor murcha para representar a morte. Interessante! Vou querer uma bandeira no caixão. Mas não, quero que me cremem. Ou não, larguem no mar. Ou ainda não... O carro? Não sei o que fazer do carro…
Sim, a casa. Pinte o alpendre e monte um cassino na sala de jantar. Faça dos dois quartos um só, leve os crucifixos para o orfanato da rua ao lado e deixe todas as janelas sempre abertas. Não esqueça de sempre ferver o chá, mas não vermelho, o verde, de ervas. O vermelho, esqueça-o e não o toque, nunca o toque. Porém o carro? Não sei o que fazer do carro.
Serei solidário. Meus diários, pode lê-los a vontade eterna. Pode publicá-los, vai ganhar dinheiro. Ou  pode queimá-los, como preferir. Nada de lembranças minhas vai trazer o bem-estar de volta. Aliás, ele nunca esteve aqui para voltar. Este bem-estar… o que tralhas como as minhas poderiam causar neste mundo atrofiado. E quem dera que elas salvassem vidas, ou libertassem outras.
Se quiser queimar tudo e desapegar das minhas coisas, está de bom gosto. Não esqueça de me queimar junto com tudo, menos o carro.
O carro? Realmente não sei o que fazer do carro. Eu não tenho carro!

Era uma vez...



             uma menininha, ela tinha um sonho...
O sonho tinha cheiro de morango, cara de palhaço, tinha olhos cor de mar que brilhavam como um sol. A menininha observava o sonho de longe, com amor e devoção. O sonho era o que mantinha a menininha viva, mesmo que ele fosse tão inalcançável. O sonho fez a menininha chorar, berrar, espernear de barda e dor... A menininha tentou esquecer o sonho, mas os olhos azuis que o sonho tinha sempre voltavam para que ela olhasse. A menininha fechou os olhos para não ver o sonho, mas a risada de palhaço que o sonho tinha acabava fazendo ela ouvir. A menininha tapou os ouvidos, mas o cheiro de morango que o sonho tinha invadia suas narinas. A menininha trancou a respiração, mas o calor do brilho do sol que o sonho tinha acabava aquecendo sua pele!
A menininha não conseguiu fugir. O sonho a machucou, a violentou, a sacudiu, mas ela se entregou totalmente. Seu coração foi arrancado, cortaram as veias calculadamente e entregaram a quatro duendes que cuidavam do sonho. A menininha ria, mesmo sem coração. Seu coração não era mais seu, era do sonho. Os duendes se encarregaram e o sonho aconteceu. Mas aquele sonho cresceu tanto que a menininha não conseguiu crescer junto... A menininha não respirava mais sem o sonho, ela exigia o sonho, era doente pelo sonho, era retardada pelo sonho tão distante.
O sonho estava longe, e a menininha não conseguia alcançar. Ela esticava as mãos, mas os duendes trancaram seu coração com aquele sonho e ela não podia pegar. A menininha, pobrezinha, sentou na beirada da calçada e chorou. Chorou porque não entendia como um sonho que começou pequenininho poderia ter crescido tanto e escapado de suas mãos... Não, o sonho nunca esteve em suas mãos. O sonho estava longe e havia levado seu coração para sempre. Enxugando as lágrimas, a menininha levantou, pensou uma forma de pegar seu sonho de volta, mas aí deu-se conta de que não era preciso resgatá-lo, era preciso deixá-lo livre. Foi aí que a menininha cresceu, chorava menos agora e projetava sonhos todos os dias. Sonhos pequenos, com o sonho de reencontrar seu amado sonho e seu coração não mais seu.
A menininha, agora adulta, gostava da ideia e se divertia, vendia sonhos... Uma fábrica de sonhos! O tempo passou, e a menininha sentia que se aproximava do sonho... Ah, toda vez que ia até a janela ver o pôr de um sol esbelto, com dois olhos negros e gigantes como jabuticabas pretas. A menininha sentiu-se perto do sonho quando mergulhou em um mar impávido de água pura e cristalina. A menininha viu seu sonho cada vez mais perto quando deitou-se sobre morangos maduros e vistosos que se grudavam no corpo e não queriam sair. A menininha sorriu... A menininha sorriu e ouviu o palhaço do sonho dar gargalhadas enquanto ela dormia. Aquele palhaço a perseguia e ela o amava, como uma mulher ama alguém verdadeiramente. Sim, a menininha sentia que estava perto...
Ah, mas ela estava tão enganada!
Seu sonho já não era o mesmo, seu sonho estava mais distante, seu sonho era tão cruel com ela... Porque ela tinha que ter este sonho? Porque ela estava marcada? A menininha ergueu a cabeça, com o rosto lambuzado de lágrimas cretinas. Decidiu recomeçar tudo de novo. Lá estava ela de volta, na calçada chorando, sozinha...
De repente, numa árvore próxima a menina reconheceu seu sonho antigo, todo enredado na árvore, velho, mas ali, o tempo todo perto dela. Ele nunca tinha ido embora. Ela é que não o enxergava mais...Passava todo dia por aquela árvore para ir a fábrica e nunca tinha parado para observar com calma.
E a menininha riu... Riu como há muito não ria. Subiu na árvore e agarrou seu sonho nos braços. Beijou-o com amor e paixão, acariciou o sonho, o carregou no colo... O sonho estava ali e era preciso agarrá-lo, amá-lo, cuidá-lo, mesmo sozinha...
Feliz a menininha foi correndo para casa, pulando amarelinha, cumprimentando todos por quem passava. As pessoas não entendiam o que uma menina com um monte de "tralhas" nas mãos podia deixar escapar tamanha felicidade.
Aquela noite a menininha dormiu tranquila, tão tranquila com seu sonho antigo do ladinho da sua cama que novos sonhos começaram a aparecer. E eram tantos... Claro, ela só precisava olhar para o mar azul, cheirar um morango gostoso, deixar o sol bater no rosto e claro... Ela precisava rir. Ninguém melhor do que seu palhaço para lhe ajudar!


Obrigada por todos estes anos de sonhos, The Beatles!
Eu amo muito vocês!